Limitação dos Efeitos Territoriais de Decisão Proferida em Ação Coletiva

Limitação dos Efeitos Territoriais de Decisão Proferida em Ação Coletiva

Por Cintia Letícia Bettio

       Carlos Guedes do Amaral

Entre muitos temas instigantes que orbitam a defesa coletiva de direitos por entidades sindicais, a delimitação territorial dos efeitos das decisões proferidas nas ações coletivas decorrentes desta atuação é uma que não raramente provoca debates perante as diversas Instâncias Judiciais.

O Superior Tribunal de Justiça, no período recente, tem reafirmado o entendimento de que a sentença proferida em ação coletiva produz efeitos em todo o território nacional, não estando estes, de nenhuma forma, restritos aos limites da competência territorial da base sindical que ajuizou a ação. Trata-se, em verdade, de uma simples análise dos efeitos e limites da coisa julgada consolidada em ação coletiva.

O debate central diz respeito à coisa julgada proveniente de um processo conduzido por um sindicato na defesa de interesse coletivo. A Constituição Federal lhe confere poderes para atuar na defesa de toda a categoria (art. 8º, III da CF/88 c/c art. 3º da Lei 8.073/90), e a coisa julgada produz efeitos “erga omnes”, para além dos limites territoriais, seja do órgão julgador ou da atuação do sindicato.

O título executivo constituído não deve beneficiar apenas os indivíduos sindicalizados. Todo aquele que pertencer ao grupo, à categoria representada pelo sindicato em determinada ação, poderá valer-se da coisa julgada coletiva para obter proteção em sua esfera jurídica individual, conforme já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça:

“Distinguem-se os conceitos de eficácia e de coisa julgada. A coisa julgada é meramente a imutabilidade dos efeitos da sentença. (omissis).

Os efeitos da sentença produzem-se “erga omnes”, para além dos limites da competência territorial do órgão julgador (Acórdão da 3ª Turma do STJ  Recurso Especial nº 399.357-SP  Relatora: Ministra Nancy Andrighi, julgado em 17.03.2009)

Diga-se que o Superior Tribunal de Justiça já vem decidindo sobre os efeitos da sentença, que se produzem “erga omnes”, há pelo menos uma década, de acordo com vários julgados, com primorosa fundamentação técnica:

“A coisa julgada é meramente a imutabilidade dos efeitos da sentença. Mesmo limitada aquela, os efeitos da sentença produzem-se erga omnes, para além dos limites da competência territorial do órgão julgador. (omissis).

Nesse sentido, confiram-se as palavras do ilustre professor italiano, que tanto influenciou o direito processual civil brasileiro (omissis):

“I – A declaração oriunda da sentença, assim como seus outros efeitos possíveis, pode conceber-se e produzir-se independentemente da coisa julgada; na aptidão da sentença em produzir os seus efeitos e na efetiva produção deles (quaisquer que sejam, segundo o seu conteúdo) consiste a sua eficácia, e esta se acha subordinada à validade da sentença, isto é, à sua conformidade com a lei.

II – A eficácia da sentença, nos limites de seu objeto, não sofre nenhuma limitação subjetiva; vale em face de todos.

III – A autoridade da coisa julgada não é efeito ulterior e diverso da sentença, mas uma qualidade dos seus efeitos e a todos os seus efeitos referente, isto é, precisamente a sua imutabilidade. Ela está limitada subjetivamente só às partes do processo”

Dessa lição, extraem-se três noções fundamentais: (i) a eficácia da sentença, por ser distinta da eficácia da coisa julgada, se produz independentemente desta; (ii) a eficácia da sentença, desde que não confundida com a figura do trânsito em julgado, não sofre qualquer limitação subjetiva: vale perante todos; (iii) a imutabilidade dessa eficácia, ou seja, a impossibilidade de se questionar a conclusão a que se chegou na sentença, limita-se às partes do processo perante as quais a decisão foi proferida, e só ocorre com o trânsito em julgado da decisão.

(omissis). Ao dizer que “a sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator”, tudo o que o legislador logrou êxito em fazer foi definir que a sentença, em que pese estender seus efeitos a todo território nacional, não poderá ser questionada em nenhuma demanda futura a ser decidida dentro da base territorial mencionada na lei. Nada mais que isso.

Os efeitos da sentença, portanto, tanto principais (representados pela existência do elemento declaratório característico de toda a decisão judicial) como secundários (representados pela criação do título executivo nas ações condenatórias), estendem-se a todos os terceiros que eventualmente se beneficiariam com a decisão” (Acórdão da 3ª Turma do STJ  Recurso Especial nº 411.529-SP  Relatora: Ministra Nancy Andrighi, julgado em 24.06.2008)

Com idêntica perspectiva refere-se a Corte Superior, em decisão que distingue a competência territorial (para o ajuizamento da ação, por exemplo) dos efeitos da coisa julgada, que serão erga omnes:

“Não se deve confundir as regras de competência com os limites subjetivos da coisa julgada e o alcance dos efeitos da sentença. No caso das ações coletivas, apesar de a competência territorial do Foro ser limitada à sua circunscrição territorial, os efeitos da coisa julgada são erga omnes, conforme se conclui do seguinte precedente do STJ: (omissis)” (1ª Seção do STJ  Decisão Monocrática no Conflito de Competência nº 102.896-DF  Relator: Ministro Humberto Martins, decisão proferida em 31.08.2009) – grifo nosso.

Conforme acertadamente destacado na decisão referida abaixo, em se tratando de processo coletivo deve-se sempre evitar a proliferação de ações com o mesmo objeto e a consequente possibilidade de prolação de diferentes decisões sobre o mesmo conflito:

2. O que caracteriza os interesses coletivos não é somente o fato de serem compartilhados por diversos titulares individuais reunidos em uma mesma relação jurídica, mas também por a ordem jurídica reconhecer a necessidade de que o seu acesso ao Judiciário seja feito de forma coletiva; o processo coletivo deve ser exercido de uma só vez, em proveito de todo o grupo lesado, evitando, assim, a proliferação de ações com o mesmo objetivo e a prolação de diferentes decisões sobre o mesmo conflito, o que conduz a uma solução mais eficaz para a lide coletiva (Acórdão unânime da 3ª Seção do STJ  Conflito de Competência nº 109.435-PR  Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 22.09.2010) – grifo nosso.

Afora a questão da compreensão exata do significado da expressão ‘limites da competência territorial do órgão prolator’, impende ressaltar que, na dicção uniforme no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a referida regra, na forma como disposta no artigo 2º-A da Lei nº 9.494/97, somente tem aplicação no que toca às entidades associativas previstas no artigo 5º, inciso XXI, da Constituição Federal, estando os sindicatos excluídos de seu âmbito de incidência:

“5. A regra prevista no art. 2º-A da Lei nº 9.494/97 é destinada tão somente às entidades associativas descritas no inciso XXI do artigo 5º da Constituição Federal. Os sindicatos – que defendem interesses de toda uma categoria, e não apenas dos associados – atuam não como representantes mas sim como substitutos processuais, conforme expressa autorização do inciso III do artigo 8º da CF” (Acórdão unânime da 2ª Turma do TRF4 Apelação Cível nº 5008144-17.2010.404.7100. Relatora: Desembargadora Federal Luciane Amaral Corrêa Münch, julgado em 14.06.2011)

De outra parte, cabe destacar que a posição firmada no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região encontra sustentação, de forma integral, na doutrina especializada:

Conforme anunciado, confundiu-se o legislador na redação dos dispositivos. Confundiu coisa julgada (limites subjetivos) com competência. Esse baralhamento já levou doutrinadores de escol a defender a ineficácia da alteração legislativa, por inócua. Eis o posicionamento doutrinário, cuja transcrição se faz interessante.

”…o Presidente da República confundiu limites subjetivos da coisa julgada, matéria tratada na norma, com jurisdição e competência, como se, v.g., a sentença de divórcio proferida por juiz de São Paulo não pudesse valer no Rio de Janeiro e nesta última comarca o casal continuasse casado! (…) Portanto, se o juiz que proferiu a sentença na ação coletiva tout court, quer verse sobre direitos difusos, quer coletivos ou individuais homogêneos, for competente, sua sentença produzirá efeitos erga omnes ou ultra partes, conforme o caso (v. CDC 103), em todo território nacional – e também no exterior -, independentemente da ilógica e inconstitucional redação dada…”

(Fredie Didier Jr e Hermes Zaneti Jr. Curso de Direito Processual Civil. Processo Coletivo. 4ª edição. Salvador: Editora JusPodivm, 2009, página 145)

Esta Corte Regional tem jurisprudência recente, proveniente da 4ª Turma, sustentando a tese ora defendida, de que “eventual decisão judicial de procedência no que toca a direitos individuais homogêneos proferida em ação coletiva promovida por sindicato alcança todos os servidores qualificáveis como integrantes da categoria substituída, independentemente de estarem eles residindo, ou não, na área de abrangência da entidade sindical”, conforme acórdão a seguir colacionado:

SERVIDOR PÚBLICO. SINDICATO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE. LIMITAÇÃO TERRITORIAL. REVISÃO ADMINISTRATIVA GERAL PELA CGU EM DEZEMBRO DE 2015. DECADÊNCIA ADMINISTRATIVA. ARTIGO 54 DA LEI Nº  INCLUSÃO DA GDPST NA BASE DE CÁLCULO DA VANTAGEM DO ART. 184, II, DA LEI Nº 1.711/04. EQUÍVOCO. DECADÊNCIA. ART. 54 LEI N.º 9.784/99. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA DO SINDICATO E DA UNIÃO FEDERAL. CONSECTÁRIOS LEGAIS. INCABÍVEL FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA.  

(…)

3. Os efeitos das decisões judiciais que acolhem os pedidos formulados por sindicato, em ação coletiva, não contemplam limitação seja sob o aspecto territorial, seja sob o aspecto subjetivo, seja sob o aspecto temporal. Conforme constou do voto do relator Ministro Herman Benjamin, no julgamento do EREsp n. 1.770.377/RS, DJe de 7/5/2020, “por força do que dispõem o Código de Defesa do Consumidor e a Lei da Ação Civil Pública sobre a tutela coletiva, sufragados pela Lei do Mandado de Segurança (art. 22), impõe-se a interpretação sistemática do art. 2º-A da Lei 9.494/1997, de forma a prevalecer o entendimento de que a abrangência da coisa julgada é determinada pelo pedido, pelas pessoas afetadas, e de que a imutabilidade dos efeitos que uma sentença coletiva produz deriva de seu trânsito em julgado, e não da competência do órgão jurisdicional que a proferiu”

4. Eventual decisão judicial de procedência no que toca a direitos individuais homogêneos proferida em ação coletiva promovida por sindicato alcança todos os servidores qualificáveis como integrantes da categoria substituída, independentemente de estarem eles residindo, ou não, na área de abrangência da entidade sindical, independentemente de serem, ou não, sindicalizados, e independentemente de, no momento da propositura, constarem no rol de substituídos. Todos aqueles que ostentem, ou tenham ostentado, a condição de servidores no período em que ocorridos os fatos jurídicos que constituíram objeto de discussão na ação coletiva, são beneficiados pela coisa julgada que venha a se formar, sendo irrelevante a situação funcional na data da propositura da ação, observados, obviamente, os limites objetivos da lide e, por consequência, do título.

(…)

(TRF4 5051391-38.2016.4.04.7100, QUARTA TURMA, Relator MARCOS ROBERTO ARAUJO DOS SANTOS, juntado aos autos em 07/02/2024) – grifo nosso.

Em sentido um pouco menos abrangente, mas ainda assim distinguindo a competência do sindicato para atuar na sua base territorial, dos efeitos da coisa julgada formada na ação coletiva, o entendimento exarado em julgados da 3ª Turma do TRF4:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA PROFERIDA EM AÇÃO COLETIVA. SINDICATO DOS POLICIAIS FEDERAIS NO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. LIMITAÇÃO DOS EFEITOS DA DECISÃO À BASE TERRITORIAL DO SINDICATO AUTOR. LEGITIMIDADE ATIVA.

1. O sindicato, com fundamento no art. 8, III, da CF, detém legitimidade para representar toda a categoria profissional na esfera da respectiva abrangência, sem necessidade de prova de filiação e de autorização, de modo que a coisa julgada formada na ação coletiva beneficia todos os servidores da respectiva categoria profissional, possuindo eles, ainda que não domiciliados no âmbito da competência territorial do órgão prolator da sentença, legitimidade para promover a execução individual do título judicial.

(…)

(TRF4, AG 5040321-37.2023.4.04.0000, TERCEIRA TURMA, Relator ROGERIO FAVRETO, juntado aos autos em 02/05/2024) – grifo nosso

Necessário referir que a matéria processual ora abordada está pendente de decisão consolidadora junto ao Superior Tribunal de Justiça (Tema 1.130), questão assim definida:

Definir se a eficácia do título judicial de ação coletiva promovida por sindicato de âmbito estadual está restrita aos integrantes da respectiva categoria profissional (filiados ou não) lotados ou em exercício na base territorial da entidade sindical autora.

É de se esperar que a partir da pacificação jurisprudencial a ser posta pelo Superior Tribunal de Justiça, o tema seja definitivamente resolvido, deixando de perfilar entre as matérias de defesa das partes rés nas ações coletivas.

Mas, enquanto a matéria não restar definitivamente resolvida, o que se pode concluir, por tudo acima afirmado, é que a limitação territorial, delimitando aos sindicalizados pertencentes à base territorial do sindicato o benefício operado pela coisa julgada, mesmo que independente da data de filiação, afronta a legislação brasileira, em especial os artigos 502, 503 e 505 do CPC; 16 da Lei n. 7.347/1985; 93, II, e 103, III, do CDC; e 3º da Lei n. 8.073/1990.

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