Uma Breve análise da Responsabilidade de Estados e Municípios por Danos Decorrentes de Enchentes

Uma Breve análise da Responsabilidade de Estados e Municípios por Danos Decorrentes de Enchentes

As enchentes ocorridas no Estado do Rio Grande do Sul desde setembro de 2023 e, em especial a ocorrida recentemente, no mês de maio, provocam a curiosidade quanto à responsabilidade civil do Poder Público pelos danos causados, em especial, aos cidadãos e empresas atingidas.


A responsabilidade de Estados e Municípios por danos decorrentes de enchentes é um tema complexo e multifacetado, permeado por diversos fatores e nuances.


Em termos gerais, a responsabilidade civil do Estado se baseia na teoria do risco administrativo, assim entendido:

 Risco integral: O Estado tem o dever de indenizar os cidadãos por danos causados por sua atuação, independentemente de culpa, bastando a comprovação do dano e do nexo causal com a ação ou omissão estatal;

Culpa: Em alguns casos, a responsabilidade pode ser atribuída por culpa, exigindo a demonstração de negligência, imprudência ou imperícia na atuação do Estado.

A partir destes limites, especificamente em relação às enchentes, alguns pontos devem ser considerados para que se possa atribuir ao Poder Público a responsabilidade em reparar os danos sofridos por cidadãos e empresas. São eles:

  1. Causas das Enchentes:
  • Fenômenos naturais: em casos de eventos climáticos extremos, a responsabilidade do Estado pode ser mitigada, a menos que se comprove falha na implementação de medidas preventivas eficazes, como é o caso de existência e manutenção de sistemas de drenagem adequados;
  • Ações humanas: desmatamento, ocupação irregular de áreas de risco, falta de planejamento urbano e obras públicas deficientes importam na responsabilidade do Estado, pois são fatores previsíveis e evitáveis, mas que dependem da atuação efetiva do Poder Público.

2. Deveres do Estado:

  • Planejamento urbano: Estados e municípios têm o dever de realizar planejamento urbano eficaz, levando em consideração as áreas de risco de enchentes e a implementação de medidas preventivas;
  • Obras públicas: Construção e manutenção de sistemas de drenagem, contenção de cheias e outras obras públicas que minimizem os impactos das enchentes;
  • Fiscalização: Impedir ocupações irregulares em áreas de risco e garantir o cumprimento da legislação ambiental;
  • Alertas e ações emergenciais: Implementar sistemas de alerta eficientes e coordenar ações de resgate e assistência à população em caso de enchentes.

As dificuldades processuais na demonstração da responsabilidade civil do Estado por danos causados aos cidadãos vitimados podem bem ser definidas em 3 aspectos:

  • Complexidade da relação causal: provar a relação direta entre a ação ou omissão do Estado e os danos específicos sofridos por cada indivíduo pode ser desafiador;
  • Provas da culpa: em casos de responsabilização por culpa, a demonstração de negligência, imprudência ou imperícia do Estado pode ser complexa;
  • Capacidade orçamentária: Estados e municípios podem alegar limitações orçamentárias para se eximir da responsabilidade, o que exige análise criteriosa da gestão de recursos públicos.

Da análise da jurisprudência, verifica-se uma consolidação em apontar a responsabilidade do Poder Público pelos danos causados por enchentes quando comprovada a omissão na implementação de medidas preventivas.

Válida é a referência a algumas decisões, que bem demonstram o acima afirmado:

RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. Enchente ocorrida em área de risco. Condenação do Município de São Paulo. Demonstrada a responsabilidade do ente público, por omissão na adoção de medidas eficazes de combate às enchentes na região. Dever de indenizar configurado. Danos materiais comprovados. Danos morais caracterizados. Indenização fixada em R$ 10.000,00, em atenção aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Sentença mantida. Recurso improvido. Tribunal de Justiça de São Paulo – Apelação Cível nº 1004944-35.2016.8.26.0007

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZATÓRIA POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. ALAGAMENTO DE RESIDÊNCIA EM CONSEQUÊNCIA DE ENCHENTE DO ARROIO FEIJÓ. 1. PRELIMINAR. ILEGITIMIDADE PASSIVA DO ESTADO. REJEIÇÃO. O Estado é legitimado passivo a responder ação indenizatória decorrente de danos ocasionados por enchente em arroio que abrange mais de uma cidade. É sua responsabilidade a manutenção hídrica do arroio. Exegese do art. 96, inciso I, da CF. 2. PRELIMINAR. NULIDADE DA SENTENÇA. DANOS MATERIAIS. NECESSIDADE DE LIQUIDAÇÃO. INDICAÇÃO DE VALORES SEM APRESENTAÇÃO DE NOTAS FISCAIS OU ORÇAMENTOS. LIMITAÇÃO AO PEDIDO INICIAL. 3. MÉRITO. OMISSÃO ESPECÍFICA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. Conforme vem entendendo esta Corte e o STF, quando há uma omissão específica do Estado, ou seja, quando a falta de agir do ente público é causa direta e imediata de um dano, há responsabilidade objetiva, baseada na Teoria do Risco Administrativo e no art. 37, § 6º da CF. 4. DANOS MORAIS EVIDENTES. VALOR DA INDENIZAÇÃO. CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO. MANUTENÇÃO. PRELIMINARES REJEITADAS. APELAÇÃO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO. Apelação Cível, Nº 70052811304, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marilene Bonzanini, Julgado em: 15-05-2013

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO MUNICÍPIO. DANOS MATERIAIS. OBRA PÚBLICA. DEFEITO NA CONSTRUÇÃO DE PONTE QUE AGRAVOU OS EFEITOS DE ENCHENTE. NEXO CAUSAL CONFIGURADO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. Comprovado que a construção da ponte pelo Município, além de não ter resolvido o problema das enchentes, acabou por agraválos, causando danos materiais ao autor, impõe-se o dever de indenizar. Aplicação da teoria da responsabilidade objetiva. RECURSO PROVIDO. Apelação Cível Nº 70040461506, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo Roberto Lessa Franz, Julgado em 25/08/2010.

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. MUNICÍPIO. DANOS MATERIAIS E MORAIS. ENCHENTE. OMISSÃO DO PODER PÚBLICO EM TOMAR MEDIDAS PREVENTIVAS. (…). Configurada a responsabilidade do ente público, consubstanciada em sua omissão em relação à tomada de medidas eficazes para a prevenção e o controle de enchentes, as quais se mostraram insuficientes ou inadequadas, restando demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta omissiva e os danos sofridos pelos autores. RECURSO PROVIDO EM PARTE. Apelação Cível Nº 70085054524, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luís Augusto Coelho Braga, Julgado em 27/08/2020.

Em suma, a responsabilidade de Estados e Municípios por danos decorrentes de enchentes é um tema que depende da análise criteriosa de cada caso, considerando as causas das enchentes, os deveres do Estado e as provas disponíveis.

Analisando o tema sob a perspectiva das enchentes ocorridas recentemente no Estado do Rio Grande do Sul e, em especial, na cidade de Porto Alegre, diversos fatos foram divulgados pela mídia Gaúcha que apontam para uma conduta absolutamente omissa por parte da Prefeitura de Porto Alegre, quanto à manutenção da integralidade do sistema de prevenção de cheias na cidade. Denúncias vindas de técnicos de órgãos responsáveis apontam para a falta consciente de manutenção dos diques, comportas e bombas de drenagem, cuja a falha, em seu conjunto, acabou levando para a desnecessária inundação de diversos bairros da cidade.

Tais fatos, que não foram negados, mas simplesmente justificados pela Prefeitura da Capital dos Gaúchos, se enquadrados no entendimento hoje adotado pelo Judiciário, levam à conclusão de uma inevitável responsabilização do Poder Público Municipal pelos danos materiais e morais impostos pela enchente ocorrida no mês de maio último, a um incontável número de cidadãos Portoalegrenses, bem como empresas que estabeleceram seus negócios no Município, na medida de razão em que essa responsabilidade é objetiva, isto é, independentemente de prova de culpa), nos termos do artigo 37, parágrafo 6º da Constituição Federal, sendo o direito de todo o cidadão que se sentir prejudicado seja pela omissão, seja por ação praticada pelo Poder Público, busque a reparação dos danos morais e materiais.

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